quarta-feira

Estava quase a escapar-me para o mundo dos sonhos, encostava a cabeça na almofada e dava um último suspiro, como se me despedisse do dia e de todas as coisas que ficaram para trás e que não podiam ser alteradas. Ela murmurou qualquer coisa, perante o meu silêncio voltou a insistir, agora mais claramente.

- Hoje senti-me só.

- Compra um cão... (silêncio) ...estava a brincar.

- Estás sempre a brincar, não é?

- Conta-me lá, então. O que se passou? (passei a minha mão na mão dela num gesto carinhoso de reconciliação) Tens a mão gelada!

- Não tenho frio... nem calor.

- Mas diz-me, porque te sentiste só?

- Estava a caminho de casa. Ultimamente, para evitar a rotina tenho ido a pé da Negrão Pinto até à Praça da Fonte. Para além disso gosto de ver as primeiras flores dos jacarandás. Dão um tom de pintura impressionista à cidade. Estava meio melancólica e ia a pensar na morte da minha mãe...

- Devias esquecer isso, bem o sabes.

- Acreditas mesmo que a minha mãe andava a comer o António Pedralvas?

- A comer? Estás bem? Que linguagem é essa?

- A minha mãe...

- Devias tentar esquecer isso querida.

- Ia a pensar nela... não faz muito sentido. Passei a minha vida a tentar fazer a coisa correcta. A tentar construir algo e vejo-me num vazio tão grande.

- Estás bem?

- As expectativas... tudo o que construí foi para realizar os sonhos de alguém que não eu. E não há maneira de resolver isso ou até mesmo de esquecer. Pensava que poderia pôr um fim a toda esta angústia. Mas não consegui. Sim, estou gelada. Por fora e por dentro. Já não sinto nada mas o vazio continua aqui. Um grande vazio com vista para um vazio sem solução e ainda maior.

- Estás a assustar-me. Queres o divórcio? (ela riu-se)

- Não compreendes. Já é um pouco tarde demais para isso.

- Nunca é tarde.

- Sim... nunca é tarde quando se fala de eternidade. Nem tarde nem cedo.

- Mas qual eternidade? (passei novamente a mão no braço dela) Estás gelada. Quero saber o que vai nesse coração. Acho que mereço.

- Não irias sentir o meu coração, querido. Já não bate.

Arquivo